A moda sustentável costurada de forma artesanal em Salvador
texto Marlon Chagas e Vanessa Jesus
capa Gabriel Jones, Pedro Hassan e Reuel Nicandro
multimídia Artur Soares
diagramação Rafael Cerqueira
audiodescrição Gabriel Jones
Quais histórias são tecidas nas margens de Salvador? Em meio a tons vibrantes iluminados pelo Sol da Bahia, artistas emergentes costuram roupas repletas de identidade. Cada ponto cruzado conta uma história e cada mão tece o fio que une o passado ao futuro promissor da moda. Na capital baiana, a prática de criar, reutilizar e transformar peças tem contribuído para uma cena fashion mais sustentável.
Durante a Idade Média, as roupas eram produzidas de forma artesanal por alfaiates e costureiras. Essa tradição diminuiu com a Revolução Industrial, quando o desenvolvimento das máquinas de costura permitiu a produção em massa. Com isso, o conceito de fast fashion (moda rápida) começou a ganhar força na década de 1980, quando grandes marcas começaram a lançar coleções com maior frequência, representando o avanço do modelo industrial de produção.
De acordo com o relatório de 2020 da Global Fashion Agenda, uma plataforma focada em promover a sustentabilidade na indústria da moda, o setor têxtil é considerado o segundo maior poluidor global. Estima-se que a produção de roupas é responsável por 10% das emissões globais de gases de efeito estufa . A cada ano, cerca de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis são gerados no mundo e grande parte se acumula em aterros sanitários.

(Reprodução: Revista Fórum/ Oxam)
Como estratégia para superar esse modo de produção, artistas nordestinos transformam a região em um polo criativo e inovador por meio do slow fashion (moda lenta). O movimento surge como resposta aos impactos socioambientais causados pela fast fashion, propondo abordagem mais consciente e responsável, tanto em relação ao meio ambiente quanto às condições de trabalho dos profissionais da indústria da moda.
Ao priorizar qualidade, durabilidade e ética, esse modelo de criação não apenas transforma a forma como vestimos, mas também a maneira como nos relacionamos com o consumo. A produção artesanal de roupas contribui com a criação de peças únicas, que são produzidas de forma mais lenta e cuidadosa.
MODA SUSTENTÁVEL, NORDESTINA E ARTESANAL
A costura, o crochê e a customização de peças têm se destacado nas redes sociais como exemplos da moda slow fashion. Ariane Barreto, 39, Mestre em Ecologia e Evolução pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e bióloga do coletivo Modativismo, acredita que a moda sustentável é um dos caminhos para permanecer com qualidade de vida no planeta pela sua durabilidade.
O conceito “Modativismo” foi criado por Carol Barreto, professora doutora do Departamento de Estudos de Gênero da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Esse termo une as palavras “moda” e “ativismo”, para refletir a ideia de que a moda pode ser uma ferramenta de resistência e de transformação social. Esse movimento busca criar pensamento crítico sobre a indústria da moda, ao propor alternativas que incentivem a produção consciente, artesanal e colaborativa. Unindo um fio ao outro, o Ateliê Mão de Mãe (AMM), que surgiu no Engenho Velho de Brotas, em Salvador, é um exemplo dessa abordagem colaborativa.

(Reprodução: Jornal Correio/Ana Reis)

(Reprodução: Instagram)

(Reprodução: Instagram)
A história do AMM começou quando Vinicius Santana, 27, diretor da marca, decidiu fotografar e divulgar nas redes sociais o trabalho da sua mãe, Luciene Santana, 62, artesã que cria peças de crochê, acessórios e objetos de decoração. Nesse período, conheceu Patrick Fortuna, 32, atual co-diretor do projeto, que se uniu a ele na missão de transformar o Ateliê em um negócio. Eles fundaram o AMM, que hoje somam mais de 120 mil seguidores no Instagram e uma loja física na Barra.
Vinicius relembra que, no início, o público demonstrava certa resistência em apreciar o trabalho artesanal e reconheceu que a desvalorização da mão de obra é um dos principais desafios enfrentados pela comunidade crocheteira. “Eu ouvia comentários como: ‘Vim comprar aqui porque não é um crochê de barraquinha de feira’”. O diretor criativo acrescenta que somente quando a marca começou a vestir pessoas influentes que o trabalho passou a receber reconhecimento.
Apesar dos desafios, a sustentabilidade permanece como uma das características inovadoras do Ateliê. Patrick Fortuna, destaca a importância de reutilizar materiais que sobram durante a confecção das roupas, a fim de reduzir o desperdício. Ele enfatiza que, no ateliê, as sobras de linhas e tecidos são reaproveitados. “Acredito que podemos reciclar praticamente tudo, depende somente da nossa vontade e criatividade”. Com esta perspectiva, a marca pôde produzir peças exclusivas que atravessam as passarelas do São Paulo Fashion Week.
“eu me queimei muito no sol e me molhei muito na chuva. Hoje minha sombra é meu filho.”
luciene santana
Atualmente, as redes sociais ajudam pequenas marcas de moda sustentável a alcançar um público global. Uma mulher que cria arte com materiais recicláveis desde os 14 anos, agora, com a ajuda do seu filho, dá continuidade aos saberes ancestrais e veste celebridades como Camila Pitanga e Marina Sena. “Eu me queimei muito no sol e me molhei muito na chuva. Hoje minha sombra é meu filho”, declara a Luciane.
Além dos trabalhos em crochê, artistas baianos têm atraído a atenção nas mídias digitais ao utilizarem roupas usadas para confeccionar peças autênticas, por meio da técnica conhecida como upcycling. Essa prática incentiva o reaproveitamento de roupas e tecidos, reduz o desperdício e apresenta possibilidades criativas por meio da sustentabilidade.

(Reprodução: Instagram)

(Reprodução: Arquivo Pessoal)



(Foto: Artur Soares)
Entre brechós e ateliês de costura, Luana Vitória, 23, designer de moda, criadora da marca Unique, é adepta ao slow fashion e upcycling. A estilista de Plataforma, bairro localizado no subúrbio de Salvador, conta que o amor pela criação e customização de roupas surgiu da curiosidade e desejo de inovar, mas reconhece que a iniciativa é desafiadora. “É uma alternativa que vai mudar o mundo, mas acho que falta valorização e incentivo. Nós precisamos de pessoas que consumam, apoiem e entendam a importância do nosso trabalho”, acredita.
Luana destaca a importância de facilitar o acesso ao conhecimento artesanal e reutilização de materiais. Com estas técnicas, a artista pôde vestir as criadoras de conteúdo digital Kananda Eller (@deusacientista) e Sheila Matos (@sheuba). A designer também participou do coletivo Modativismo, onde a bióloga Ariane Barreto é responsável pela área da sustentabilidade.



O projeto, composto majoritariamente por mulheres negras, é liderado por Carol Barreto, irmã de Ariane. Nascidas em Santo Amaro, recôncavo baiano, e atualmente residentes de Salvador, as duas atuam no coletivo com o objetivo de descentralizar a moda e exaltar a estética afro-brasileira. Os trabalhos desenvolvidos neste grupo surgem da reflexão sobre os desafios de ser mulher negra no Brasil. Desde 2013, em um processo colaborativo, foram criadas peças que têm sido apresentadas em desfiles e galerias. Este laboratório criativo de moda aproxima mais de 50 mulheres de diferentes histórias, tecendo múltiplas conexões.
Dentre os frutos deste trabalho, destaca-se a Coleção Asè, que nasceu em 2016 para o Angola International Fashion Show e a Adama Paris Fashion Agency, homenageando a riqueza e a diversidade da cultura negra. “A moda tem um impacto social e na expressão de grupos. Por isso, quando você valoriza os seus, isso chama atenção”, conta Ariane.
“a gente quer provocar impacto socioambiental, gerar renda e reinserir mulheres que estavam fora do mercado de trabalho.”
patrick fortuna
Nesta mesma costura de ideias, o Ateliê Mão de Mãe pretende oferecer cursos profissionalizantes de crochê para mulheres que desejam aprender e ter novas oportunidades de renda. “A gente quer provocar impacto socioambiental, gerar renda e reinserir mulheres que estavam fora do mercado de trabalho”, enfatiza Fortuna.
Para Luana Vitória, a democratização dos espaços públicos é fundamental para a construção de um futuro mais consciente e sustentável, pois oferece oportunidades de aprendizado e resgate de saberes tradicionais, como as técnicas manuais. “Eu gostaria muito que houvesse mais instituições gratuitas de produção, onde as pessoas pudessem aprender a bordar, utilizar e acessar máquinas de costura, assim como podemos ler livros na biblioteca”, enfatiza.
ARTE, IDENTIDADE E TRANSFORMAÇÃO NA PERIFERIA
A estética nordestina, a presença feminina e as vivências além dos centros definem o trabalho destes artistas locais. Vinicius e Patrick destacam que, muito antes de se falar amplamente sobre moda sustentável, essa prática já fazia parte do cotidiano das famílias. Mães, tias e avós reciclavam e criavam peças como forma de complementar a renda, demonstrando que a sustentabilidade está profundamente enraizada na cultura local. Esse legado cultural, passado por gerações, serve hoje como inspiração para iniciativas contemporâneas de moda responsável.
Essa valorização da cultura local se reflete no trabalho de João Guaragna, 27, nascido em Mundo Novo/BA e residente no bairro de Matatu de Brotas, em Salvador. A rua é a sua principal referência, onde o artista se inspira e se conecta aos seus semelhantes. Após uma trajetória de autoestima e empoderamento como homem negro e gay, João se encontrou no streetwear. Esse estilo combina roupas casuais, como camisetas, moletons e tênis, com designs ousados e estampas gráficas que refletem a identidade das comunidades urbanas.

(Reprodução: Arquivo Pessoal)

(Foto: Artur Soares)

(Reprodução: Arquivo Pessoal)
O trabalho dele é resultado de um processo criativo que consiste no garimpo por diversos brechós da capital baiana. Como resultado de suas aventuras nas estradas da moda, Guaragna se tornou idealizador de um programa intitulado “Periferia É Hype” da rádio Educadora FM 107,5. Com o apoio da rádio, o artista pôde influenciar jovens e adultos numa produção de moda autêntica e sustentável. O programa veiculado em parceria com a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) é uma iniciativa que busca dar voz e visibilidade às produções culturais e artísticas da periferia.
“reutilizar as peças e consumir brechós é um ato político.”
joão guaragna
Reconhecendo-se como designer upcycling, João deseja não apenas criar novas peças, mas um mundo com pessoas mais conscientes e adeptas ao slow fashion. “As lojas de departamento recriam as peças em grande quantidade e isso impacta diretamente no meio ambiente, produz muito lixo, sem falar na exploração das pessoas que trabalham nas cadeias de produção. Reutilizar as peças e consumir brechós é um ato político”, afirma.
Esses artistas não apenas desafiam as normas tradicionais da moda, mas também constroem uma rede de apoio e solidariedade entre os criadores e a comunidade. Ao compartilhar suas experiências, eles estimulam um diálogo sobre a importância da moda consciente e o impacto social de suas escolhas. Essa movimentação vai além da estética. Trata-se da perspectiva de que a moda pode ser um meio para reivindicações sociais e culturais.
Uma nova geração de talentos da moda periférica surge no horizonte da capital baiana, com nomes como o Ateliê Mão de Mãe, a modativista Ariane Barreto e os designers Luana Vitória e João Guaragna. Suas criações, inspiradas nas vivências em seus territórios, trazem narrativas únicas. Utilizando as ferramentas digitais, eles entrelaçam tradição e inovação. Cada peça criada conta a história de um futuro onde a arte, a periferia e a sustentabilidade se unem, como mãos que tecem o fio de uma nova realidade.

Marlon Chagas e Vanessa Jesus
Essa reportagem foi produzida por Marlon Chagas e Vanessa Jesus, estudantes de Jornalismo e Produção em Comunicação e Cultura da Universidade Federal da Bahia e integrantes do Programa de Educação Tutorial em Comunicação.
Fotografia: Airí Assunção e Lourdes Maria / Labfoto ©️ 2024
Assistência de Fotografia: Airí Assunção e Lourdes Maria / Labfoto ©️ 2024
Edição: Lourdes Maria e Airí Assunção / Labfoto ©️ 2024
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