conheça o tradicional Campeonato de Golzinho da Galícia por Jefferson Freitas
texto Clarice França e Pedro Hassan
capa Gabriel Jones, Pedro Hassan e Reuel Nicandro
multimídia Eduardo Santana
diagramação Sofia Pato
audiodescrição Ana Francisca e Edson Barbosa
O som do apito ressoa nas manhãs de domingo e anuncia que é dia de jogo na comunidade. Nascido no bairro do IAPI, em Salvador, o Golzinho da Galícia é um dos torneios de várzea que formam a identidade esportiva da capital baiana. Disputado na ladeira do Largo da Galícia, a tradição coleciona características que a diferenciam dos outros campeonatos populares. Os destaques ficam para os times compostos por 20 jogadores, mas com apenas três em campo, a cobrança do lateral, que pode ser feita com os pés ou com as mãos, e o pênalti, que também pode ser batido quando o time sofre cinco faltas. Atraindo torcedores e jogadores de diferentes bairros soteropolitanos durante seis meses, o Golzinho simboliza a relação entre a comunidade e o esporte, além de manter viva uma herança que surgiu há 14 anos.
A tradição esportiva é mantida, hoje, de forma hereditária. Idealizada por Zé Branco, morador da comunidade, junto com seu vizinho Lula, a competição está sob a responsabilidade do sobrinho de Zé, Jefferson Freitas, 34, instrumentador cirúrgico, conhecido na comunidade como Carreta. Iniciado em 2010, o campeonato de rua – como era chamado anteriormente – não era tão diferente do que conhecemos hoje. Antes do apito inicial havia muito trabalho a ser feito. Varrer a rua, fazer as marcações do campo e tirar os carros do espaço eram funções exclusivas de Jefferson, que agora se desdobra para tocar o Golzinho da Galícia. Neste bate-bola com Carreta, a Fraude te convida a conhecer o famoso baba na ladeira.
Futebol de várzea: Futebol amador, jogado em campos informais sem tanta estrutura.
Baba: Termo popular na Bahia, que se refere a prática do futebol amador.

(Reprodução: @campeonato_galicia / Edição: Eduardo Santana)
FRAUDE – Como funcionava o campeonato inicialmente?
CARRETA – Era dividido entre rua de cima e a rua de baixo, cada uma tendo quatro times. Depois que eu tomei a frente do campeonato, entrei em contato com amigos e passamos a convidar pessoas de outras comunidades. Hoje em dia, temos times e jogadores de diversas localidades, como Suburbana, Lauro de Freitas/BA e Madre de Deus/BA. Neste momento são 20 times, é bastante variado.
FRAUDE – Vocês pensam em levar os jogos do campeonato para outros bairros, ou preferem manter a tradição na comunidade?
CARRETA – A tradição é aqui, até porque os jogos são na ladeira. Algumas pessoas já me pediram ajuda, perguntando sobre as regras para replicarem em outros campeonatos de golzinho aqui em Salvador. Sempre procuro ajudar como posso.
FRAUDE – Como surgiu o interesse de outras comunidades fora do IAPI em participar do campeonato?
CARRETA – Acredito que primeiramente pela premiação. Também pela diversidade dos jogadores, já que os melhores do cenário do futebol de várzea de Salvador estão participando desse campeonato. Depois da matéria no Esporte Espetacular, da Globo, e da divulgação na internet, o interesse por parte da galera aumentou. Para a gente, é normal jogar em uma ladeira, mas, para eles, é algo diferente.
FRAUDE – O que te levou a ser responsável pelo Campeonato de Golzinho da Galícia?
CARRETA – Depois de meu tio, outras pessoas tentaram tocar o campeonato, mas ninguém quis continuar. Por estar envolvido há muito tempo, as pessoas passaram a dizer que só participariam caso eu assumisse. Então, por já fazer parte e saber como as coisas eram feitas, resolvi ficar à frente do campeonato. Mas não é fácil, não!

(Foto: Eduardo Santana)
FRAUDE – Durante os finais de semana, como sua família lida com ter que dividir seu tempo com os jogos?
CARRETA – É complicado, viu?! Tem hora que a esposa pega no pé, mas a gente dá um jeitinho. Hoje mesmo, ela e meus filhos tiveram que viajar, porque é aniversário de minha sogra, mas eu tive que permanecer aqui por causa do campeonato. Eles entendem de um lado, mas é aperto de mente do outro.
FRAUDE – Como você avalia a relação entre a comunidade e o campeonato?
CARRETA – Posso dizer que é uma relação boa, muitas pessoas ganham com isso. Os jogos ajudam muito quem não tem uma renda fixa, já que podem botar sua banquinha e tirar um trocado sem nenhuma cobrança. Fora isso, como forma de integração, também fazemos o campeonato sub-12 para as crianças participarem, elas ficam empolgadas.
FRAUDE – Como funciona a organização para que times de outras comunidades possam participar?
CARRETA – O primeiro contato é feito pelo Instagram, trocamos números e explico como é o Campeonato de Golzinho da Galícia, como é a comunidade e como faz para chegar. Para participar, eles precisam confirmar previamente.
FRAUDE – Quais são as regras e como elas funcionam?
CARRETA – Não tem muitas. Mas, para algumas pessoas, pode ser um pouco diferente. Uma das regras que temos aqui é que a lateral pode ser cobrada tanto com a mão quanto com o pé, por causa do espaço do passeio, já que tem momentos que a torcida é tão grande que fica em cima [da linha lateral]. Outra regra é que, com cinco faltas, um tiro livre é concedido ao time adversário. Além de que cada time pode pedir um minuto de descanso. Fora isso, as regras são normais, de futsal praticamente.
FRAUDE – E a arbitragem, como funciona?
CARRETA – O responsável é o mesmo da época do meu tio, o árbitro José Francisco. Resolvi mantê-lo porque ele já conhece as regras do campeonato. Eu falo quais jogos terão e é ele quem escala o juiz que vai apitar. Os times têm que pagar a arbitragem. Cada time paga um valor que a gente passa diretamente para ele ou ao juiz da rodada.
FRAUDE – Você acredita que, pelo campo ser uma ladeira, existe algum tipo de desvantagem para um dos times, a depender do lado que jogue?
CARRETA – Eu não sou muito de jogar bola, organizo mas não sei jogar. Porém, não vejo muita desvantagem. Quem não conhece fala que a vantagem é jogar descendo a ladeira no primeiro tempo. A gente que é familiarizado, nascido e criado aqui na rua, não vê diferença. Mas os times que jogam pela primeira vez aqui, passam mal e falam que quem é daqui tira proveito disso.
FRAUDE – Você disse que os melhores jogadores do futebol de várzea estão competindo no Golzinho da Galícia. Quais perfis de jogadores passam pelo campeonato?
CARRETA – Passam por aqui muitos jogadores que já foram profissionais, como Danilo Gomes, que jogou pelo Bahia e Internacional, e Rodrigo Lobão, pelo Paysandu. Fora os jogadores que são pagos para representar times e disputar no campeonato. Além de contratações, tem jogadores que são pagos por cada partida jogada.
FRAUDE – Existe rivalidade entre os times e jogadores no Golzinho da Galícia?
CARRETA – Existe, eles são daqui da comunidade mesmo! São os dois times que quase sempre chegam a final. O Galícia, que representa a rua de cima, e o Brongo City, pela rua de baixo. Quando chega a fase de mata-mata, a torcida do Galícia se concentra com uma banda e saem todos juntos pela rua. O Brongo City é a mesma coisa. Por ser um largo aberto, tem torcedor que tenta entrar em campo, já que não tem alambrado, querendo tirar a bola de campo quando o time está sofrendo. É uma agonia o campeonato com essas torcidas, é zoada o tempo todo!

(Foto: Eduardo Santana)
FRAUDE – Desde que assumiu o campeonato, qual tem sido a sensação de ver os jogadores conquistarem o título?
CARRETA – O atual campeão é da Suburbana, o Red Bull Bela Vista. Eles falam que ano passado foi o melhor campeonato e título para eles. A galera elogia e agradece bastante. É gratificante ver o reconhecimento [dos jogadores], não somente por serem campeões, mas por poderem participar.
FRAUDE – Por sinal, qual é a premiação para o time campeão?
CARRETA – A premiação para o time campeão esse ano é de R$5.000,00 (cinco mil reais), segundo lugar R$2.000,00 (dois mil reais) e terceiro lugar R$1.000,00 (mil reais). O valor da premiação é levantado a partir do dinheiro das inscrições, cada time paga R$400,00 (quatrocentos reais). Com isso eu vou juntando, para que no final, eles recebam suas premiações.
FRAUDE – Os jogos são transmitidos nas redes sociais?
CARRETA – Durante os jogos eu costumo fazer lives no Instagram pela conta do campeonato (@campeonato_galicia), mas não tenho muito tempo para isso por conta das outras demandas que vão surgindo ao longo das partidas. De vez em quando eu gravo e no decorrer da semana posto. A galera engaja bastante.
FRAUDE – Quais são as situações mais inesperadas (ou esperadas) que acontecem enquanto os jogos estão rolando?
CARRETA – O que mais acontece aqui é quebra de telhado, a bola vai para o alto e quando cai não tem jeito. Como a galera me conhece, quando acontece isso eles me comunicam e eu compro o que precisa na loja de material de construção daqui da comunidade, que inclusive, pertence ao dono do time Brongo City.
FRAUDE – Qual foi o caso mais inusitado que já aconteceu durante um jogo?
CARRETA – Uma das coisas mais engraçadas que já aconteceu, foi quando os cachorros de um vizinho se soltaram e ficaram correndo atrás da bola. Os jogadores tentaram segurar, os torcedores subiram nos portões… foi uma agonia retada!
FRAUDE – O que você espera para o futuro do Campeonato de Golzinho da Galícia?
CARRETA – Eu espero que o campeonato cresça ainda mais e que um dia eu possa proporcionar essa competição sem precisar cobrar nada de ninguém, tendo apoio ou patrocínio. Tenho certeza que nas comunidades de Salvador não tem só violência. O esporte é uma das coisas boas que podemos encontrar e promover.

Clarice França e Pedro Hassan
Essa entrevista foi produzida por Clarice França e Pedro Hassan, estudantes de Jornalismo e Produção em Comunicação e Cultura da Universidade Federal da Bahia e integrantes do Programa de Educação Tutorial em Comunicação.
Fotografia: Airí Assunção e Lourdes Maria / Labfoto ©️ 2024
Assistência de Fotografia: Airí Assunção e Lourdes Maria / Labfoto ©️ 2024
Edição: Lourdes Maria e Airí Assunção / Labfoto ©️ 2024
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