11 de abril de 2025

FORTIFICADOS PELO VOSSO NOME

By In Fraude 26

uma imersão no patrimônio cultural e militar de Salvador

reportagem Ana Francisca, Rafael Cerqueira e Reuel Nicandro
capa Gabriel Jones, Pedro Hassan e Reuel Nicandro
diagramação Artur Soares
audiodescrição Clarice França

A guerra de 1624

No século XVII, a Holanda era uma potência comercial e desafiava o monopólio português no comércio de açúcar. Em 1624, os holandeses, conhecidos como batavos, invadiram Salvador. Eles enfrentaram resistência dos colonos e foram expulsos no ano seguinte. A invasão alertou a coroa portuguesa sobre a necessidade de fortalecer as defesas das colônias. O ataque mal sucedido a Salvador foi um revés, mas não impediu os holandeses de dar continuidade às suas ambições no Brasil.

Terra cobiçada por muitos, mas dominada por Portugal, seu primeiro invasor, Salvador nasceu para demarcar território como uma cidade-forte. Suas ruas e edifícios são postais que registram o passar dos séculos e refletem seus 476 anos. A cidade hipnotiza com a vista de locais históricos, como o Elevador Lacerda na Praça Maria Felipa, as ladeiras cercadas por casarões no Pelourinho ou o Farol na orla da Barra. Todos esses lugares têm um ponto em comum, os imponentes fortes que as protegem.

Essas fortalezas, que narram silenciosamente os sofrimentos em tempos de guerra, protagonizaram momentos decisivos na luta pela preservação do território, como destaca o historiador Evaldo Cabral de Mello na trilogia de livros “A guerra holandesa”. As invasões a Salvador são exemplos que marcam esse período de intensos conflitos, quando as fortificações da cidade travaram uma série de batalhas contra seus inimigos. O tempo transformou esses locais de guerra em monumentos, admirados não mais por sua força militar, mas pela beleza e pelo legado histórico que evocam. Cerca de 20 fortificações ainda permanecem em Salvador, reverenciadas por sua arquitetura, passado de lutas e herança cultural.

FORTE MONTE SERRAT

“ó clementíssima Virgem Maria, minha soberana e Mãe Augusta Senhora do Monte Serrat…”

Um dos fortins mais antigos do Brasil, o Monte Serrat está posicionado no topo da encosta na praia de Boa Viagem, na Cidade Baixa. Sua localização oferece uma vista privilegiada da Baía de Todos os Santos, que possibilita o monitoramento da aproximação de embarcações. Anteriormente conhecido como Castelo de São Felipe, o forte se destaca por sua estrutura arcaica, um exemplo da arquitetura de transição entre o medieval e o moderno da engenharia de fortificação.

Fundado no século XVII, o forte foi construído devido à necessidade de montar um sistema defensivo contra ataques de corsários e invasores estrangeiros. Quando ainda exercia sua função militar, o “pigmeu” — apelido dado por Miguel Pereira da Costa, mestre de campo responsável na época — tinha apenas sete peças de artilharia, apesar de ter capacidade para mais. Afinal, como nas palavras do mestre extraídas do livro “As Fortalezas e Defesas de Salvador”, não se deve dar aos pequenos o mesmo armamento que a um gigante. 

Localização: Rua Rio São Francisco – Monte Serrat

Tão branco quanto a bandeira de rendição dos soldados que o defendiam durante o ataque, a fortaleza faz referência ao estilo renascentista. Traços de fortificações italianas podem ser vistos nos bastiões arredondados e muros espessos. O Monte Serrat possui pequenas guaritas, que aumentam a linha de disparo, mas diminuem a proteção dos soldados. Essa configuração faz com que o forte funcione como “bucha de canhão”, sacrifício estratégico para proteger forças mais valiosas atrás de suas muralhas. Com ele, era matar ou morrer, mas, ao ser cercado pelas frotas holandesas, a única opção foi correr. Embora tenha tentado guerrear com a esquadra, os defensores foram suprimidos pelo adversário e debandaram para os confins da cidade.

Hoje, o “pigmeu ancião” é um importante ponto turístico e cultural de Salvador. Além de sua relevância histórica, o forte e a Ponta do Humaitá atraem visitantes por suas paisagens, ao proporcionarem um dos mais belos pores do sol da cidade. O lugar também é palco de eventos culturais, o que possibilita aos visitantes frequentar um ambiente de reflexão sobre o passado de Salvador.

FORTE SÃO DIOGO

“senhor Jesus, Deus forte, santo e imortal, tu sempre escolhe o mais fraco para manifestar seu poder…”

Nascido do velho ditado “brasileiro só fecha a porta depois de ser roubado”, o forte foi idealizado após a derrocada para os batavos na batalha de 1624. Como o Porto da Barra era o principal meio de desembarque na cidade, surgiu a necessidade de repensar a proteção do local. Nesse contexto de urgência, os fortes Santa Maria e São Diogo foram projetados como solução, sendo esse último construído a partir de uma planta irregular italiana. Situado acima de um morro, ele apresenta uma casa de comando de dois pavimentos.

Herói emergente, o fortim não passou despercebido aos olhares céticos quanto a seu impacto defensivo. Para Bernardo Vieira Ravasco, secretário de Estado e Guerra do Brasil em 1649, um forte tão minúsculo e, em suas palavras, sem utilidade ou serventia, não justificava o investimento de recursos para a construção. O engenheiro militar Miguel Pereira da Costa também não tinha muitas expectativas para a fortificação, mas, assim como a união faz a força, o forte se consolidou como um firme sistema defensivo portuário. Ao lado de seus companheiros, os fortes Santa Maria e Santo Antônio da Barra, ele assegurou que após a derrota do Monte Serrat em 1624, o Porto não fosse mais invadido pelas tropas inimigas. 

Localização: Rua Forte de S. Diogo – Barra

A fortaleza foi importante para impedir a entrada de Maurício de Nassau, comandante das forças holandesas, que redirecionou sua investida para o Forte São Bartolomeu, no interior da Baía de Todos os Santos. Essa ação reforçou a importância estratégica do Forte São Diogo, que desafiou as expectativas e rompeu com a insignificância que lhe era atribuída.

Hoje, o Forte São Diogo descansa. Em sua aposentadoria, o ex-combatente abriga o Espaço Carybé de Artes, local dedicado às obras do artista argentino Hector Julio Páride Bernabó, o Carybé. Além das exposições, o espaço abriga o restaurante Mirante, situado na entrada do fortim. O São Diogo se ressignifica como um ambiente de cultura e lazer que une história, arte e gastronomia num mesmo lugar.

FORTE SANTO ANTÔNIO ALÉM DO CARMO

“Santo Antônio, protetor dos que sofrem”

Em 1638, quando Nassau lançou seu ataque sobre Salvador, deparou-se com o mais resiliente dos fortes, o Santo Antônio Além do Carmo. Essa fortificação era composta por um propugnáculo, pequeno baluarte quadrangular. Juntamente com essa estrutura, havia dois hornaveques, construções projetadas para impedir o acesso a uma área principal, posicionados ao norte e ao sul.

Sua origem divide opiniões, mas há quem diga que ele surgiu como uma medida protetiva durante a primeira invasão de 1624. O forte fez parte de uma trincheira maior, coordenada por Conde Bagnuolo, comandante militar que liderou as forças da cidade durante o ataque holandês. Com uma estrutura de terra, a fortaleza evoluiu para um bastião de proteção estratégica, com a finalidade de impossibilitar que os invasores ultrapassassem suas muralhas.

Críticas às defesas da época eram comuns, principalmente vindas de figuras proeminentes como Bernardo Vieira Ravasco, mas as ofensas não atingiram o Forte Santo Antônio. Embora o ex-secretário afirmasse que a fortificação era irregular na perspectiva da engenharia militar, ele constatou que a construção funcionava com “perfeição” dentro de suas limitações. O forte era modesto, mas possuía sete peças de artilharia. Isso indicava que, apesar de não ter a melhor estrutura, exercia função defensiva e estratégica, especialmente por sua posição elevada e pelo reforço progressivo recebido após a invasão holandesa de 1624.

Localização: Rua Direita de Santo Antônio – Santo Antônio Além do Carmo

Dois séculos depois, em 1830, o Ministério da Justiça instalou na fortaleza a Casa da Correção, que assumiu oficialmente a função de cárcere em 1832. Durante a Revolta dos Malês, o local serviu como prisão para os revoltosos. Após alguns anos, em 1837, foi utilizado na repressão da Sabinada. Suas paredes robustas, que antes defendiam Salvador, passaram a abrigar prisioneiros acusados de insubordinação e crimes contra a Fazenda Real. Cem anos adiante, também serviu como penitenciária para presos políticos do regime militar de 1964. O forte permaneceu ativo como Casa de Correção até 1976, quando o presídio foi transferido para a Mata Escura e recebeu o nome de Presídio Salvador.

Em 1979, suas instalações foram ocupadas pelo bloco carnavalesco “Os Lord’s” e, após serem tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1981, passaram por reformas para abrigar o Centro de Cultura Popular. No ano seguinte, o forte foi palco de ensaios do Bloco Afro Ilê Aiyê e permaneceu com esta função por seis anos. Ao fim desse período, suas atividades foram praticamente desativadas, restando apenas duas escolas de capoeira em funcionamento. 

Em 1997, o projeto “Forte da Capoeira” foi iniciado, com o objetivo de recuperar o Forte de Santo Antônio Além do Carmo e transformá-lo em um centro cultural dedicado à esse estilo de luta, com atividades artísticas e educativas, promovendo inclusão social e preservação do patrimônio histórico, com o apoio do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) e do Ministério da Cultura.

BEM-ESTAR SOCIAL

O historiador e professor Adler Homero Fonseca de Castro, 62, afirma que a imersão na jornada de algumas das fortificações históricas de Salvador revela como esses patrimônios possuem um importante valor cultural. Para ele, essas construções, além de terem exercido seu papel na defesa territorial, são testemunhos das transformações políticas, sociais e urbanas do país. Sua preservação é um desafio constante, que exige não apenas esforços de conservação estrutural, mas também uma reinvenção de seus usos.

A dificuldade em atribuir uma função social a esses espaços históricos está no desafio de equilibrar a preservação de sua integridade patrimonial com a necessidade de torná-los locais atrativos e funcionais. A instalação de museus, centros culturais e atividades socioeducativas são formas de ressignificar as edificações. Esse processo demanda uma extensa curadoria para não descaracterizar aquilo que os faz fortes.

Em Salvador, existem exemplos que se destacam como referência do futuro que as fortificações podem seguir para além das fortalezas aqui apresentadas. O Forte do Barbalho, atualmente, é um espaço cultural que abriga apresentações de música popular, festivais de arte e eventos relacionados à dança, teatro e cinema. Além disso, na fortificação ocorrem oficinas, palestras e exposições que promovem a educação e o acesso à cultura local. Assim, nota-se que é possível preservar o valor histórico dos fortes, atribuindo-lhes novas funções que dialoguem com a sociedade contemporânea. 

A reinvenção desses espaços, com o intuito de transformá-los em polos culturais e sociais, é o caminho crucial para sua preservação e manutenção. Adler Homero pontua que o objetivo principal do patrimônio histórico é o bem-estar da população. “A gente não protege por proteger, a gente protege para beneficiar o povo.” Ao zelar pelo potencial das fortificações como centros de cultura e educação, Salvador resgata sua herança histórica e fortalece os laços de identidade de sua comunidade.

Ana Francisca, Rafael Cerqueira e Reuel Nicandro

Essa reportagem foi produzida por Ana Francisca, Rafael Cerqueira e Reuel Nicandro, estudantes de Jornalismo e Produção em Comunicação e Cultura da Universidade Federal da Bahia e integrantes do Programa de Educação Tutorial em Comunicação.

Fotografia: Airí Assunção e Lourdes Maria / Labfoto ©️ 2024
Assistência de Fotografia: Airí Assunção e Lourdes Maria / Labfoto ©️ 2024
Edição: Lourdes Maria e Airí Assunção / Labfoto ©️ 2024


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