60 anos de Zé do Caixão, personagem que inaugurou o terror no Brasil
texto Gabriel Jones
capa Gabriel Jones, Pedro Hassan e Reuel Nicandro
multimídia Gabriel Jones
diagramação Clarice França
audiodescrição Amanda Menezes
“O que é a vida? É o princípio da morte! O que é a morte? É o fim da vida! O que é a existência? É a continuidade do sangue! O que é o sangue? É a razão da existência!”
Zé do Caixão, 1964
A arte audiovisual encanta os espectadores desde sua criação, no século XIX, com suas luzes, movimentos e constante experimentação. O cinema envolve de forma mágica seu público nas escuras salas, criando a sensação de sonhar acordado… Mas o que acontece quando esse sonho é, na verdade, um pesadelo?
Junto às primeiras narrativas cinematográficas, nasceu o cinema de horror e o eterno jogo de sustos entre cineasta e seu público. Em busca de novas formas de deixar todos de cabelo em pé, o gênero explora o mais grotesco que se pode imaginar. O título do primeiro filme de terror ainda está longe de ter um vencedor conclusivo. Disputado pelo curta francês Le Manoir Du Diable (1896), de Georges Méliès, e pelo longa alemão Das Cabinet des Dr. Caligari (1920), de Robert Wien, a única certeza é a do rico legado que esses filmes deixaram para a construção do gênero.
Entre um grito e outro são criados novos ícones do terror que entram para a história. Em 1964, quando surge no Brasil, Zé do Caixão aparece como uma figura que provoca medo e inaugura esse novo gênero no cinema nacional. Dirigido por José Mojica Marins, o filme À Meia-Noite Levarei A Sua Alma, completou 60 anos em novembro de 2024. Seja pelas crenças religiosas, pela ambientação interiorana ou pela busca de uma narrativa distinta das produções estrangeiras, a obra se mantém relevante até hoje e deixa como legado um terror com identidade genuinamente brasileira.

(Reprodução: Prime Vídeo)
A história acompanha o coveiro Zé do Caixão, temido por todos em uma pequena cidade do interior, e sua irrefreável busca por ter um filho com Terezinha, que já era noiva de outro. Essa obsessão era sangrenta e ele não hesita em mutilar, se orgulha de violentar e não se arrepende de matar para atingir seus objetivos. Encapuzado, de cartola e com unhas longas, Zé mancha de sangue as telas em preto e branco de tal forma que o vermelho vivo é quase visível. O filme não tem medo de explorar efeitos práticos que saltam aos olhos e esta brutalidade rara entre seus contemporâneos o torna especial.
Mojica não tinha curso de direção cinematográfica e gravava seus filmes de forma amadora. Não sabia ao certo como escrever um roteiro, quais os nomes técnicos ou como executar planos de produção, agia inteiramente no improviso. Filho de um gerente de cinema, sua experiência vinha dos filmes que assistia e das pequenas produções que criava com os amigos. Mal tinha lançado seu último filme independente, Meu Destino em Tuas Mãos (1963), e já se preparava para produzir o que entraria para a história como o primeiro terror brasileiro. Com limitações de orçamento, Mojica não só dirigiu como roteirizou e protagonizou sua própria obra.
Filmes de terror podem trabalhar com o medo de diferentes formas para construir seus enredos. Não é apenas o mistério do sobrenatural, mas o tormento que ele inflige nas personagens. Não é sobre a violência pura, mas sobre ela estar tão próxima que conseguimos até sentir. Nem mesmo se trata da loucura de um personagem ou outro, mas da capacidade de fazer o telespectador duvidar se o que viu é real ou não. Entre tantas possibilidades de construção do gênero, o diretor de À Meia Noite Levarei Sua Alma optou por misturar todas elas, com o diferencial do próprio “monstro” ser também o protagonista.
Herege e orgulhoso, Zé do Caixão é cético. Ainda assim, se apresenta como satânico só para zombar das crenças do povo de sua cidade. Isso é mostrado ao público como um indicativo da maldade do personagem, antes de qualquer ato violento. É quase uma justificativa para o que ele comete depois, como se a crueldade e blasfêmia andassem juntas. Um exemplo disso é quando, em plena Semana Santa, decide comer carne de cordeiro escorado na janela, para que toda a cidade o assista afrontando às tradições.

(Reprodução: Paulo Salomão)

(Reprodução: “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”, 1964)
Decidido a ter um filho, Zé mata a própria companheira, Lenita, por não conseguir engravidá-la e considerá-la um obstáculo para seus planos. Após uma série de assassinatos, Terezinha é abusada pelo protagonista e jura se vingar, pouco tempo antes de cometer suicídio. Mesmo com tanta violência, aparentemente sem qualquer punição, é nos últimos 10 minutos de filme que o coveiro enfrenta seus pecados. Ele é atormentado por uma procissão fantasmagórica e o castigo de suas vítimas do pós-vida. Quando aparece morto no cemitério da cidade, Zé do Caixão muda de algoz para vítima, sendo forçado a enfrentar todo o sobrenatural que antes desacreditava.
Fica evidente que o monstro de Mojica é o reflexo da falta de fé e o desdém com a moral católica. Ele é um personagem sádico e suas atitudes são horríveis, mas essas características fariam dele “apenas” um vilão bárbaro. O que o torna monstruoso é a quebra da expectativa comum ao padrão social, que era seguir a boa moral cristã. Um vilão comete maldades, algumas piores que outras, mas ainda tem algum traço de humanidade. Um monstro, por outro lado, não necessariamente cometeu maldade alguma, mas desperta o medo por não ser “um de nós”.

(Reprodução: “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”)

(Reprodução: À Meia-Noite Levarei Sua Alma)

(Reprodução: “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”)
Zé do Caixão brilhantemente pertence às duas categorias. Mesmo sendo de carne e osso, como todos os habitantes da pequena cidade que aterroriza, ele cria uma aura sobrenatural, que o destaca e eterniza. Ainda que não simpatizemos com as atitudes detestáveis de um personagem, é sempre curioso entender como ele foi construído e de que modo se comunica com seu tempo.
Uma das características mais fascinantes do terror no século XX é a capacidade de registrar, nas películas de negativo, os medos e preconceitos da sociedade da época. Nossa empatia é seletiva e o que consideramos humano como nós, infelizmente, sempre caminhou a passos vacilantes. Isso fez com que o cinema de horror mostrasse ao público, mesmo sem querer, esse zeitgeist oculto, um espírito de um tempo que tenta se varrer para debaixo do tapete.
Atualmente, há produções nacionais de terror que mostram a pluralidade de narrativas que existem pelo Brasil, re-imaginando o que há de assustador e macabro por aí. O Clube dos Canibais (2018), Morto Não Fala (2018), A Mata Negra (2018), O Nó do Diabo (2018), O Juízo (2019) e Medusa (2021) são apenas alguns exemplos em meio a um mar de filmes que estão prontos para assustar novos públicos. Segundo Stephen King, “filme de terror é um gênero fora da lei”. Se podemos agradecer alguém por quebrar as regras e inspirar tantos outros cineastas ao longo do tempo, esse alguém é José Mojica Marins e seu clássico de 1964.






“Péssima noite para você!”
Zé do caixão, 1964

Gabriel Jones
Esse artigo de opinião foi produzido por Gabriel Jones, estudante de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia e integrante do Programa de Educação Tutorial em Comunicação.
Fotografia: Airí Assunção e Lourdes Maria / Labfoto ©️ 2024
Assistência de Fotografia: Airí Assunção e Lourdes Maria / Labfoto ©️ 2024
Edição: Lourdes Maria e Airí Assunção / Labfoto ©️ 2024
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