texto Rafael Cerqueira
publicado 26.05.2025
Em vida, estamos sempre em busca de meios para descarregar e avaliar as tensões do dia a dia, principalmente aquelas sofridas no ambiente de trabalho ou nas relações interpessoais. No mundo artístico, existe uma prática bastante comum: converter as frustrações rotineiras em letras de música — o que, na maioria dos casos, garante algum sucesso. Para Diego Álvaro Moncorvo, ou melhor, Baco Exu do Blues, a história não foi diferente.
O cantor reúne uma série de sucessos como “Te Amo Desgraça”, “Me Desculpa Jay-Z” e “Girassóis de Van Gogh”. O auge de sua carreira ocorreu em 2016, com o lançamento de um clipe intitulado Sulicídio. Nele, Baco, em colaboração com Diomedes Chinaski, critica o cenário brasileiro do rap, tecendo considerações sobre o favoritismo do Sudeste na cena — mais especificamente, expondo a forma como os rappers de São Paulo são enaltecidos e vangloriados por músicas que chegam a ser, no máximo, medianas, enquanto, do outro lado, rappers nordestinos e nortistas são esquecidos e têm suas produções marginalizadas e escanteadas.
Assim que foi lançado, Sulicídio causou um verdadeiro revertério na cena do rap brasileiro. Havia aqueles que acreditavam nas ideias da dupla e apoiavam um boicote aos artistas das regiões mais favorecidas. Outros negavam aquilo que a música narrava e atacavam os dois de diversas maneiras. Alguns chegaram até a compor músicas-resposta — também chamadas de diss tracks — com o intuito de depreciar e rejeitar o que fora dito em Sulicídio, ou até mesmo zombar da aparência e da voz de Baco e Chinaski.
Toda essa repercussão afetou Baco, algo perceptível em outra de suas músicas: “Expurgo”. Trata-se de uma colaboração entre Chinaski, Rapadura, Nissin e Baco Exu do Blues, lançada em parceria com a produtora paulista RAPBOX, com o objetivo de valorizar artistas de fora do Sul. Em “Expurgo”, também lançada em 2016 — um pouco depois de Sulicídio —, Baco dava os primeiros indícios de como sua carreira estava impactando sua saúde mental.
“E eu cansado, enjoado de dar gole ao santo
Eu sou o meu próprio sonho, então esse é o meu gole
Engulo o álcool e o álcool me engole
Me dê ouvido ou me dê outro gole
O rap me faz e faço rap até que ele me degole, ou me dê outro gole”
O abuso excessivo de álcool, o cansaço constante e a santificação do homem são três das características que acompanharam Baco ao longo de sua jornada — e que têm origem aqui. No auge de seu sucesso, parte do público de rap o odiava, enquanto outra parte o ovacionava. As expectativas colocadas sobre Baco eram altas, e foram elas que o colocaram “En Tu Mira”.
O que há “En Tu Mira”?
Toda essa contextualização é crucial para se entender a importância de “En Tu Mira” na carreira de Baco, visto que se trata — como ele mesmo afirma — de um pedido de socorro. “En Tu Mira” foi lançado em agosto de 2017, um ano após todo o alvoroço causado por Sulicídio. A música é o interlúdio do álbum que marca seu renascimento, Esú, com com direção de fotografia do soteropolitano David Campbell.
No videoclipe, Baco encontra-se em um daqueles hotéis baratos, alisando a nuca e o cabelo, com sinais claros de ansiedade e agonia. Seu olhar não é triste, mas sim cansado. O desespero que emana de sua figura é tão vívido que, mesmo sem dizer uma palavra, é possível sentir o peso que o homem carrega nas costas apenas por sua postura. A iluminação escura, com tons esverdeados, garante ao protagonista do clipe — o próprio Baco — centralização e destaque.
Então, surge o outro elemento principal da performance: o espelho. Ele reflete a imagem de Baco e o obriga a encarar sua própria estrutura cansada, exaurida pelas expectativas colocadas sobre seus ombros. Mas é mais do que isso. Baco encara a si mesmo na tentativa de absorver algo de suas próprias falas, como propõe a teoria psicanalítica desenvolvida pelo médico Jacques Lacan. Para o psicanalista, visualizar características em outras pessoas só é possível quando essas já existem — ou existiram — em nós. O papel do ser humano, em sua visão, é aprender sobre si mesmo por meio das relações com o outro. Por isso, ao olhar-se no espelho, Baco tenta aprender consigo, ouvindo seu outro “eu” — que, ao longo do clipe, tenta se dissociar dele para assumir o controle, ainda que suas aparições sejam reprimidas pelo próprio Baco. Isso é bem retratado pelo jogo de câmera contínuo e instável.
“O deus que habita em mim, eu tô libertando
O flash está me cegando
O álcool está me matando
Minha raiva está me matando
Sua expectativa em mim, está me matando”
A raiva e a pressão fazem com que o “outro eu” de Baco ganhe forças — o deus oculto que lhe cospe verdades na cara. A dualidade entre seus fãs e seus odiadores o levava apenas a um único destino: a morte. Seu corpo pedia ajuda, pois seus apoiadores exigiam dele novas críticas, clipes e “revoluções”, enquanto os que o odiavam faziam questão de ressaltar constantemente o quão sua existência era ofensiva, ou o quanto Sulicídio foi um erro. Aos poucos, no videoclipe, o cerco em torno de Baco se fechava, e suas alternativas de escape tornavam-se limitadas.
O clímax do videoclipe é atingido no instante em que Baco percebe que sua única opção é renascer — ressurgir por meio da morte e fugir de todas as cobranças que caem sobre si, tornando-se Exú: não mais um humano, agora um deus. Seu esforço, no entanto, foi em vão. O álcool e o cigarro não foram suficientes para suprir sua exaustão diante de tanta cobrança e exigência.
“En Tu Mira” foi um pedido de socorro. Enquanto Baco clamava por ajuda, recorrendo à sua última fagulha de esperança — seu trabalho musical — era elogiado por parte do público, que celebrava seu mais novo lançamento e criticado por aqueles que já o rejeitavam. Sem mais opções, no fim do videoclipe, ele decide dar lugar a Exú, recorrendo ao “cano” — o único que lhe disse “eu te amo” e parou para ouvir os desabafos desesperados de um artista em ascensão.