17 de junho de 2025

ROTA 69

By In Petalhada

texto Henrique Carneiro
publicado 17.06.2025

15 de junho. Domingo. O céu sobre Salvador hesita entre o laranja da última luz e o roxo que prenuncia o espetáculo. A cidade pulsa, mas de um jeito diferente. Como se segurasse a respiração. Como se esperasse algo que já aconteceu e, ainda assim, surpreende. A Concha Acústica, espécie de concha mesmo — útero de pedra e eco —, vibra antes mesmo da primeira nota.

Não é só um show. É um rito. A Concha, que já viu tantos nomes, hoje é templo para uma Marina. E não qualquer uma: Marina Lima. Corpo elétrico, voz líquida. Ela não entra, ela emerge. Etérea e precisa. Desliza entre luzes como quem conhece o caminho do fogo sobre a água.

O público não apenas assiste. Flutua. Dobra. Torna-se parte. Uma maré cheia que dança na sua órbita, obedecendo às marés da guitarra, às fases da lua de suas canções. As luzes não apenas iluminam, mas desenham no céu constelações de uma mitologia íntima, onde os deuses têm refrões e as deusas usam calças pretas justas e botas com saltos imensos.

Meu mundo você é quem faz. Quem está lá entende. O mundo é mesmo moldado por canções que ficaram maiores do que as dores que as inspiraram. 

A cidade respira em ondas, como se cada pulmão baiano se sincronizasse ao compasso da voz dela. Marina, timoneira de um barco invisível, conduz Salvador por águas de neon e desejo.Ela dança num tempo só dela, e o mundo, sem saber dançar tão devagar, tenta acompanhá-la. 

A noite não começa, ela se revela. E se revela como as melhores coisas: aos poucos, por dentro. Coisas que só eu sei. Ela canta, e nesse instante, todo mundo acredita que sabe também. Ou pelo menos sente.

As memórias acendem na pele dos que cantam. Histórias se entrelaçam em fios de saudade e sonho. O vento sopra o nome dela pelas arquibancadas. Marina. É o som que paira, flutua, encosta. Brilho de joia e fantasia, ela sorri, e esse sorriso, por um segundo, vale mais do que a própria melodia.

É difícil amar. É difícil ser gente. Mas ali, no calor da Concha, o vício de gente difícil no amor se torna dança. As inseguranças derretem sob a luz do palco. A timidez encontra ritmo, embalada pela multidão que canta junto, mas sozinha também. Cada um se reescrevendo em silêncio entre versos, corpos e notas.

A guitarra corre como correnteza noturna. Marina a cavalga com a precisão de quem conhece os atalhos da emoção. O tempo se curva. Os relógios se calam. Não há antes, nem depois. Só o agora. E esse agora tão inteiro que parece eternidade.

Quem sabe o fim não seja nada e a estrada seja tudo. O show é também crônica. É prece. A poesia não está só nas letras. Está na entrega. No instante que vira ritual. No palco que vira altar. Na cidade que vira pista. Na Concha que vira confissão.

Quando o último acorde se esvai, não é silêncio. É reza. É a escuta prolongada de algo que continua mesmo depois do fim. Vida valeu, não te repetirei jamais. O público permanece suspenso entre o agora e o sempre. A noite ainda brilha dentro da gente. A cidade, essa velha ouvinte, guarda a promessa no seu ouvido de concreto.

E então, enquanto as luzes se apagam e os corpos se separam, uma pergunta flutua no ar quente, ainda vibrante:

Quem vai escutar o meu sim?

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